quinta-feira, 11 de junho de 2009

Susan e as sobrancelhas


O Globo- Segundo Caderno - Quinta – feira, 28 de maio de 2009

Logo – a Página Móvel

Susan e as sobrancelhas

Renato Lemos

Outro dia, no programa “Superbonita”, exibido pelo GNT, Taís Araújo e Cléo Pires conversaram por aproximadamente 10 minutos sobre sobrancelhas. Foi um papo animado discutiam como se falassem de questões realmente sérias, como a ida do Obina para o Palmeiras ou a inapetência do ataque do Botafogo. Estavam as duas deitadas em macas de massagem, costas nuas, nos jardins do hotel Sheraton, em São Conrado. Era uma daquelas manhãs luminosas de outono no Rio: o céu azul, o mar com espumas brancas, ventinho. Enquanto debatiam sobre os cuidados que toda mulher deve ter ao arrancar os pelos da face, outras duas mulheres massageavam e davam tapinhas em suas costas. Muito bom. Taís e Cléo, além de espetacularmente lindas, são espertas o suficiente para fazer tudo àquilo – truques de pigmentação, preenchimento de falhas, uso do Botox para atacar as rugas – parecer convincente. Diziam que, de um jeito ou de outro, as sobrancelhas podem ser um caminho seguro para se conhecer a essência de uma pessoa. Funcionou direitinho, pelo menos comigo. Até então sobrancelha era para mim uma coisa insignificante, tanto que só há pouco tempo aprendi sua grafia correta – cismava que era sombrancelha. Quando acabou o programa fui imediatamente até o espelho verificar as quantas andavam as minhas. Caramba, as meninas tinham toda razão. Olhando de perto, minhas sobrancelhas tinham o aspecto de uma BR – 101 em dia de obra. Era um caminho sem volta.

Susan Boyle, a escocesa que conquistou o mundo cantando “I dreamed a dream” no “Britain’s got talent”, program de calouros da Inglaterra, deve ter uma Taís ou uma Cléo soprando coisas em seus ouvidos. Em sua primeira apresentação, há cerca de um mês, Susan, que tem 47 anos e garantiu jamais ter sido beijada pra valer, compareceu aos estúdios enfiada em um vestido - vovozinha e, como único enfeite, um colar que parecia apenas um suporte para seu crachá (numero 4.321) pendurado. O cabelo era uma nuvem. Sapatos altos, Karl Lagerfeld, o estilista alemão que disse certa vez que um salto sete e meio salva qualquer postura, não deve ter imaginado gente como Susan usando um deles. No palco, ela era, antes de tudo, feia. Mas, acima de tudo isso – como se sinalizasse firmemente o tal caminho para se conhecer a essência de uma pessoa-havia as sobrancelhas no seu rosto. Duas. Enormes. Ferozes. Dignas. Olhando uma para outra, como duas taturanas prestes a entrar em guerra.

Domingo passado, quando disputou a semifinal do concurso, isso tudo tinha mudado. Susan reapareceu no programa como uma espécie de Dilma em inicio de campanha. Uma beleza, tipo caso de “antes” e “depois”. Usava um vestido escuro, daqueles que emagrecem. Ela cantou “Memories” tirada do musical “Cats”. É uma musica bonita. Lá pelo meio, a letra evoca tempos de felicidade e beleza. No palco, de sobrancelhas feitas e maquiagem discreta, Susan parecia uma outra mulher. Talvez por isso tenha cantado pior (chegou a desafinar tristemente nas primeiras notas). Ou talvez por isso, pela primeira vez tenhamos prestado mais a atenção à sua voz que a seu rosto. O povo bateu palmas, soltou gritinhos e a caloura faturou a chance de disputar a final do programa. Justíssimo, diga-se. Mas, no dia seguinte, os acessos ao vídeo na internet caíram para a terça parte dos registrados na estréia.

Antes de mais nada – e Maria Gladys está aí há muito tempo para confirmar -, não existe mulher feia. Nem é você que esta bebendo pouco. Há sempre alguma coisa bacana em toda mulher. Ou são os olhos. Ou as coxas. Ou ela rebola direitinho. Ou ela compra livros maneiros. Ou usa óculos legais. E saias no meio do joelho. Ou fala coisas que você gosta. Ou o acompanha nos “Velozes e Furiosos 4”. Ou fica quieta num canto. Ou tem um cheiro bom. Ou bebe cerveja com você. Ou diz que torce pro seu time. Ou faz lista pequena no supermercado. Ou usa biquíni de lacinho. Ou escreve poesia em cadernos escolares. Ou coleciona os mesmos quadrinhos que você. Ou tem uma covinha engraçada na virilha. Ou tem peitos de mamão papaia. Ou simplesmente é feia, mas canta bem. Como Susan.

Mas – vai daqui um apelo patético – queremos as sobrancelhas de Susan de volta. Susan sem sobrancelhas é como a Monalisa sem aquele sorrisinho maroto. Ou a Renata Vasconcelos sem as covinhas na bochecha. Falta algo. Personalidade. Cultivo. História. Alem de grossas elas desenham rotas em seu rosto, orientam as emoções. Sem sobrancelhas, Susan é uma cantora qualquer uma daquelas meninas do Raul Gil que não irão à parte alguma. As sobrancelhas de Susan – mais do que a sua voz – nos davam motivos sinceros de torcer pelo seu sucesso. E ter um lado para torcer é coisa essencial na vida de qualquer um.

David Lynch, o cineasta truqueiro de “Cidade dos Sonhos”, filmou “O homem Elefante” em 1980. Era um filme baseado em uma história real sobre um homem, John Merrick, com uma enorme deformidade facial, que é violentamente explorado em freak shows. O filme, melancólico e angustiante, foi produzido por Mel Brooks. O resultado é um freak movie filmado com muita categoria e sensibilidade. Na época do lançamento Lynch revelou que optara por guardar imagem do rosto de Lynch (John Hurt em atuação poderosa) para o exato momento em que a platéia estivesse dividida entra a aversão e a atração. E, a partir daí, faze-la optar pelo lado mais fraco da corda. Ele sabia que, se guardasse seus trunfos na manga poderia trazer a plateia definitivamente para seu time – e faze-la amar seu personagem. Todo mundo torce para o mais fraco, ou para o mais feio, vá lá.

Susan Boyle não é O Homem Elefante, é preciso que se esclareça. Está muito longe disso. Parece ser uma ótima companhia para um chope com torresmo no botequim da esquina. Além de cantar muito bem, é óbvio. A historinha é apenas uma ilustração dos códigos de funcionamento do mundo do espetáculo. Dos freak shows ao cinema, passando pelos programas de calouro, claro. Chacrinha que o diga. E o Ugly Betty também. O sucesso não costuma o meio-termo. Ou é ou não é. Nada mais longe do mundo do espetáculo do que o “quase”. Ali, ninguém pode ser quase bonito. Nem quase feio. Mesmo com um tratamento “superbonita” a que foi submetida, Susan ainda é feia ( ou linda, vá lá ! ) o suficiente para driblar os “quases” e vencer no final. Mas, se fosse ela, eu tratava de deixar minhas duas taturanas de molho.


AilatanDias


Nenhum comentário: